Banda C: o primeiro grande desafio do 5G no Brasil

por Samuel Possebon Conteúdo: Teletime

Uma vez validados, na próxima semana, os estudos técnicos da Anatel sobre a interferência nos serviços de satélite pelas transmissões de banda larga móvel pelas tecnologias IMT 2020 na faixa de 3,5 GHz, a agência estará diante de um grande desafio, que envolverá uma grande quantidade de atores e possivelmente terá uma solução mais complexa do que foi a limpeza da faixa de 700 MHz quando a frequência foi vendida para os serviços de 4G, em 2014.

A questão que se coloca é como vender a faixa de 3,5 GHz em 2020, considerada essencial para chegada do 5G no Brasil, e ao mesmo tempo minimizar um impacto social considerável nos serviços de satélite na banda C que operam em frequências próximas. As interferências existem, segundo a análise técnica conduzida pela agência (confira aqui o relatório preliminar que ainda será discutido pelo Comitê de Espectro e Órbita da Anatel). E a mitigação parece ser mais complexa do que a simples instalação de filtros, constataram os testes.

A banda C no Brasil

Para entender a complexidade do problema é preciso entender o que significa o uso da banda C pelos serviços de satélite. Segundo dados da Anatel, existem hoje 11 satélites brasileiros operando em banda C. Eles são assim definidos quando a posição orbital está notificada ao Brasil pela UIT e o centro de operação do satélite fica no país. Há ainda 26 satélites estrangeiros com autorização para atender ao Brasil que também operam na banda C. Todos eles de alguma maneira podem ser afetados quando a faixa de 3,5 GHz for utilizada para transmissões de banda larga móvel em 5G. Mas a maior parte desta capacidade é dedicada a serviços corporativos, onde as antenas costumam ser maiores e onde existe a possibilidade de ajustes técnicos individualizados para contornar as eventuais interferências.

Mas alguns destes satélites em banda C carregam canais de TV não codificados, que podem ser facilmente captados com uma parabólica e um aparelho de recepção adequado para a frequência (o chamado serviço de TVRO). O problema maior está no satélite StarOne C2 (pertencente à Embratel, do grupo Claro Brasil), localizado na posição 70oW, com 28 transponders onde existem pelo menos 20 emissoras de TV com sinal aberto transmitindo de forma analógica e mais de 100 canais dedicados a emissoras de TV e rádio com sinal digital, mas não codificado, que podem portanto ser captados livremente. Entre os sinais analógicos estão todas as grandes redes de TV brasileiras (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV…). Entre os sinais digitais não codificados há canais de interesse público, como TV Câmara, TV Senado, TV Brasil e TV Escola, entre outros.

A pesquisa PNAD/IBGE de 2017 aponta que existem cerca de 17 milhões de domicílios no Brasil (24% do total) recebendo sinais de TV via parabólicas, dos quais cerca de 6 milhões captam o sinal exclusivamente por parabólicas, espalhados em todo o Brasil. Considerando-se 3,5 habitantes por domicílio (e há parabólicas que atendem também a grandes condomínios) tem-se uma ideia do problema social de que estamos falando. Apenas a título de comparação, no processo de limpeza da faixa de 700 MHz, foram distribuídos cerca de 12 milhões de kits de recepção para a população de baixa renda em apenas 1,4 mil das 5,6 mil cidades brasileiras, a um custo próximo a R$ 3 bilhões.

Não se sabe precisamente quantas destas antenas parabólicas são de banda C nem quantas estão apontadas para o StarOne C2, mas presume-se que seja a grande maioria, pela relevância do conteúdo disponível no C2. Tampouco se sabe o endereço de instalação destas parabólicas, já que elas são livremente compradas no mercado e instaladas sem nenhum tipo de controle das emissoras de TV, muito menos do Estado.

Migração para a banda Ku

Segundo as análises conduzidas pela Anatel, a instalação de filtros em todas estas 17 milhões de antenas não resolveria o problema de interferência completamente. O secretário de telecomunicações do Ministério de Ciência, Tecnologia, Comunicações e Inovações (MCTIC), Vitor Menezes, declarou nesta quarta, 22, que o problema possivelmente só será contornado com a transferência dos canais para a banda Ku, faixa do espectro utilizada por vários satélites em transmissões de TV e que não sofre interferências das transmissões em 5G.

A razão pela qual o StarOne C2 se tornou o foco de praticamente todas as parabólicas é histórica. A posição orbital onde ele se encontra abrigou os satélites Brasilsat, da época da Embratel estatal, que atendiam ao mercado de TV. Com as emissoras todas já abrigadas naquela posição, a Embratel privatizada investiu em manter a posição atendida com satélites adequados para TV. Um substituto do StarOne C2 está inclusive em construção: o StarOne D2.

Mais complexo, contudo, é entender o modelo por trás das transmissões abertas de TV via satélite, e porque a discussão de viabilização da faixa de 3,5 GHz, mais uma vez, envolverá as grandes emissoras de TV, a exemplo do que aconteceu com a faixa de 700 MHz. Originalmente, o satélite era utilizado para o envio dos sinais das geradoras cabeça de rede para suas afiliadas pelo Brasil. Nos anos 80, quando estas transmissões começaram a ser feitas pelo Brasilsat, em banda C, não havia por parte das emissoras por que se preocupar com a codificação dos sinais, pois ninguém tinha como captá-los de forma simples.

Os fabricantes de parabólica e receptores logo perceberam uma oportunidade, já que o sinal estava lá, aberto, e a cobertura terrestre das emissoras de TV era deficiente em boa parte do território brasileiro. Passaram então a comercializar kits de recepção residenciais de banda C, relativamente baratos e simples de instalar, capazes de pegar o sinal do satélite em qualquer local do Brasil, e o modelo logo se proliferou. Ato contínuo, a audiência das parabólicas tornou-se significativa para as emissoras e a tecnologia se tornou uma forma de integrar o país, atraindo inclusive outros canais para a posição orbital, alguns deles sequer transmitidos de maneira aberta. Outras emissoras locais aproveitaram a cobertura nacional do C2 para ampliar sua área de abrangência. A partir daí, nenhuma emissora teria mais coragem sequer de digitalizar os seus sinais (o que implicaria para o telespectador a necessidade de um novo equipamento), quanto mais codificá-lo, mudar de satélite ou cortar as transmissões.

Ambiente sem regras

Mas existe um problema nesse modelo: ele não está previsto em nenhum instrumento normativo ou legal. A rigor, não existe radiodifusão via satélite, muito menos radiodifusão de cobertura nacional. A concessão de radiodifusão é sempre local, outorgada a uma geradora, que pode ou não ter algumas retransmissoras ou ceder seus sinais a outras geradoras afiliadas de outras cidades, sempre com transmissão terrestre, e obedecendo a limites legais de concentração de outorgas.

Já o sinal transmitido pelo satélite é um sinal privado, destinado às afiliadas e retransmissoras. Do ponto de vista regulatório, se classifica como um Serviço Limitado Privado, mas que por não ter nenhum bloqueio tecnológico, pode ser facilmente captado (“interceptado”) pelas 17 milhões de parabólicas residenciais em banda C.

Existe um único instrumento normativo que um dia tratou das transmissões de TV via satélite: trata-se da Portaria 230/1991, editada pela então Secretaria Nacional de Comunicações do Ministério da Infraestrutura do governo Collor, e assinada pelo secretário Joel Marciano Rauber. A portaria instituiu a Norma Geral de Telecomunicações Número 5 (NGT 05/1991). Lá pelas tantas, em seu item 5.4, a NGT 05/91 dizia que “depende necessariamente de autorização, permissão ou concessão a exploração do serviço de radiodifusão via satélite”. O problema é que serviço de radiodifusão via satélite não é um serviço definido em nenhum outro lugar e certamente não está previsto em lei. Há interpretações de que esta norma foi revogada com a Resolução 220/2000 da Anatel, e nada entrou no lugar no que se refere ao regramento das transmissões de TV via satélite. Mas há quem aponte que, por se tratar de radiodifusão, não caberia à Anatel revogá-la. De toda forma, não se tem notícia de que em algum momento da história recente o ministério, a quem cabe a regulação do mercado de radiodifusão, ou a Anatel, que regula o segmento de satélites, tenham cobrado o correto cumprimento da NGT 05/1991 em relação à obrigação de outorga de radiodifusão como pré-requisito para as transmissões via satélite.

Dois desafios

Desta forma, colocam-se dois problemas para qualquer solução que envolva a banda C e a faixa de 3,5 GHz. O primeiro é justificar, do ponto de vista de políticas públicas, um esforço (inclusive financeiro) para mitigar um problema de um serviço que a rigor é privado. O impacto social das milhões de parabólicas recebendo sinais de TV na banda C certamente seria um argumento, mas como definir o que pode ser feito? Seriam distribuídos kits de recepção de banda Ku para população que hoje depende dos sinais da banda C? Quem teria direito a receber os kits? As antenas parabólicas serão reapontadas para outros satélites? Quais satélites? As emissoras teriam alguma responsabilidade de manter os sinais no satélite por quanto tempo e em que condições? Haveria algum processo de adequação regulatória destas emissoras por meio de um serviço de radiodifusão nacional? Neste caso, haveria algum limite no número de outorgas ou players no mercado? A conta desta transição seria paga pelos compradores da faixa de 3,5 GHz, como aconteceu na faixa de 700MHz? O modelo de uma empresa administradora como foi a EAD nos 700 MHz, responsável por operacionalizar as políticas públicas de mitigação e limpeza da faixa, seria mantido? São perguntas que certamente terão que ser respondidas até o leilão de 5G, com forte impacto na modelagem e preço do leilão.

O segundo problema é mercadológico: as emissoras de TV mantêm seus sinais abertos na banda C porque têm uma audiência importante, e esta audiência decorre do fato de que todas as parabólicas de banda C (ou a maior parte delas) estejam apontadas para um único satélite, o StarOne C2, em 70oW. Para migrarem para a banda Ku e se manterem juntas na mesma posição, seria necessário haver capacidade ociosa, e ao que tudo indica não há lugar para todos no mesmo lugar. É como se dezenas de passageiros de um avião precisassem ser reacomodados em outros voos. Dificilmente todos seguirão juntos. Como seria feita escolha daqueles que seguem juntos e aqueles que seguirão separados? Por quem? Quais arranjos serão feitos pelas emissoras neste remanejamento e quais os efeitos concorrenciais desta mudança na audiência das redes de TV? Como seriam respeitados os limites territoriais das afiliadas locais, por exemplo? Como ficaria o consumidor sabendo que dificilmente captará os sinais no mesmo lugar?

As respostas a estes e outros questionamentos certamente precisam ser dadas antes do leilão de 5G, previsto para o primeiro semestre de 2020, em um trabalho de concertação que caberá à Anatel e ao governo, onde interesses das empresas de telecomunicações, radiodifusores, empresas de satélite e de milhões de usuários estão em jogo.

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