Lost, a série que mudou a TV continua viva

Nº 148 – Jan/Fev 2015

por Fabio Hofnik*

ARTIGO

Durante o voo 815 da Oceanic Airlines, um avião passa por turbulências, sofre uma pane e cai em uma ilha tropical misteriosa, a partir daí Lost nos conta sobre a vida de cada um dos sobreviventes desse acidente. Mas não, a série não é isso, aliás nem perto disso, vai muito além. Ao longo de suas sete temporadas, o programa apresenta um universo completo e complexo. Com passado, presente e futuro. Ou melhor, passados, presentes e futuros.
Exibida nos Estados Unidos pelo canal ABC, a trama surgiu no único momento da história da TV, uma época que a Internet estava conhecendo o conceito de 2.0 e foi justo nisso em que os criadores e roteiristas do programa se apoiaram. A integração dos produtores com o público via web, no início da primeira temporada, foi à chave para a expansão do universo ficcional. Essa conexão entre os consumidores e os criadores que ficou evidente ao longo dos seis anos da série, a cada episódio era possível notar os contornos dessa relação quase que simbiótica.
Não tem como negar, Lost foi um marco histórico na TV em vários âmbitos. A série é considerada por estudiosos como Henry Jenkins e Frank Rose como uma das experiências transmidiáticas mais completas do ecossistema de convergência. A utilização dos ARGs — jogos que introduzem ao jogador o universo e o coloca dentro da história — aproximou o público da atração criando um vínculo único e imersivo. A cada intervalo de temporada, os roteiristas especializados em mídias digitais focavam-se em criar enredos interativos na internet lançavam novos fatos que complementavam a história da TV para os fãs mais ávidos que estavam dispostos a, literalmente, mergulhar na série. Mesmo durante os hiatos eles tinham a oportunidade de explorar o universo do programa e desvendar seus mistérios.
A legião de fãs de Lost é comparada aos de Star Wars, Star Trek e outras sagas de sucesso no cinema e TV de tamanha a grandiosidade. Parte desse sucesso deve-se ao profundo e complexo universo criado e todos os produtos paralelos que seguem a marca. Livros, games, produtos colecionáveis e brindes promocionais foram vistos com bons olhos pelo público e fizeram com que o interesse da audiência se mantivesse ao longo dos anos. Além dos inúmeros produtos não oficiais criados pelos fãs que se multiplicaram em sites de vendas, e integram o catálogo de vários e-commerces.

Os caminhos imersivos desenvolvidos em Lost não eram completamente inéditos, afinal TV já conhecia outros produtos tão fascinantes quanto. Porém, não diante daquelas novas formas de distribuição, produção e financiamento de conteúdos televisivo. Na era da TV a cabo tão difundida, da internet presente em quase todos os lares. Na década de 60 Star Trek já havia criado comoção no público com complexidade narrativa, cenários surreais e personagens diferentes dos comuns vistos nos filmes da época. A fantasia já era presente em outras obras televisivas como Além da Imaginação, que claramente inspirou Lost. Nos anos 1990, foi a vez de Twin Peaks que com apenas duas temporadas trouxe para a TV temas polêmicos e arcos narrativos de exigiam alta demanda cognitiva da audiência. Já nos anos 1990, no boom das sitcoms, a série Arquivo X trouxe a questão do fanatismo ao formato, novamente. Desde a primeira temporada o mundo todo já vestia-se como os agentes do FBI e investigavam aliens em seus encontros e convenções ao redor do mundo, a TV revivia momentos de legiões de consumidores recepcionando os fãs de braços abertos. A oportunidade de toda essa bagagem cultural no coletivo emocional do público de TV e a genialidade de J.J. Abrams na criação coloca Lost no topo da lista dos eventos relevantes na TV. Alguns críticos e pesquisadores consideram sem excitar, a série como sendo o fenômeno mais impactante na história da televisão mundial.

O universo transmidiático de Lost
Lost foi um case realmente completo, a franquia trouxe ao público uma vários livros que expandiram o universo ficcional da série. Até uma obra que existia apenas dentro da narrativa, foi trazido ao mundo real com direito a entrevista do autor fictício em programas de TV reais.
Também foram lançados jogos de videogame, álbum de música especialmente criada para a série, websódios que auxiliam a compreensão da complexa história do programa, itens colecionáveis como camisetas, réplicas e miniaturas de personagens e cenários. Entretanto, o que mais marcou a experiência transmídia de Lost foram os ARGs — jogos de realidade alternativa. Que em cada temporada colocavam os fãs cada vez mais imersos ao enredo da série.
Seja criando ou expandindo a história na internet e no mundo real, os jogos davam a oportunidade de o público vivenciar uma experiência única.
Como por exemplo o Lost University, em que se criou uma universidade online com o objetivo de ensinar assuntos relacionados à série. As aulas eram ministradas por professores reais e abordaram temas como filosofia, física quantifica, etc. Os outros ARGs apostaram numa mistura de caça ao tesouro com pesquisas e conspirações sobre entidades fictícias, com o propósito de imergir o público no universo da atração. A soma desses caminhos transmidiáticos certamente colocou Lost como um case de extremo sucesso e responsável por uma nova forma de contar histórias.
Passados dez anos desde sua primeira temporada de Lost, não é difícil encontrar em diversos produtos audiovisuais no mercado, referências diretas ou não à série que nos trouxe uma ilha misteriosa e dezenas de heróis que tinham cada um uma lição a aprender. Deixar seu legado no mundo, saber morrer, mas principalmente saber continuar vivo.

Fabio Hofnik é membro do Era- Transmídia, realizador audiovisual, produtor de eventos com atuação em entretenimento imersivo narrativo. Também é responsável pela Imersivos, companhia que desenvolve produtos narrativos e imersivos para marcas, produtos e ações de live marketing.


Por que contar história é a melhor arma?

por Daiana Sigiliano

Não se conta mais histórias como antigamente. A convergência modificou a TV, o cinema, a literatura, o público e, acima de tudo, as narrativas. Hoje uma ‘simples’ série televisiva pode se expandir de uma forma que nem o próprio criador da trama previa. Com inúmeras ferramentas e linguagens, a história passa a ser tanto do espectador quanto dos roteiristas. É como se o universo abordado ali, ainda permanecesse na cabeça do público depois que ele desliga a TV. Por isso, hoje não existem mais meros ‘espectadores’ e sim participantes.
Porém, toda essa revolução partiu de um princípio muito básico e genuíno, o de contar histórias. Lost só nos modificou e fundamentou a cultura da convergência, porque tinha uma grande e complexa narrativa.
Antes mesmo de ser considerada uma forma de entretenimento ou até mesmo um mero vício, as séries de TV são histórias. E nós temos uma irremediável necessidade de ouvir e conta-las.
Jonathan Gottschall, um autor americano especializado em storytelling, vem há anos estudando por que as tramas nos fascinam tanto. Segundo ele, o ser humano tem encantamento tão grande pelo ‘era uma vez’, que uma boa narrativa pode persuadir mais pessoas que provas e números.
As narrativas vão além de um simples passatempo, elas nos moldam e muitas vezes nos ajudam a construí, nossas atitudes, medos, esperanças e valores. Uma série de TV é mais de que grandes atores, ótimos roteiristas, cliffhangers e ações de transmidiáticas. Tudo parte e se fundamenta na história. É isso que nos conecta emocionalmente e nos faz querer assistir o próximo episódio.
O que vem depois é apenas consequência desse primordial ponto de partida.
A base de tudo é a construção e o desenvolvimento de uma boa história, pois é a partir dela que qualquer ferramenta da convergência será explorada. Mesmo entre tantos gêneros e formatos, ao longo da história as narrativas permanecem com a mesma intenção de agradar, entreter, informar, formatar, compartilhar com o outro as experiências reais ou virtuais. Em um eterno jogo de faz de conta. Na era da imersão, ainda não inventaram melhor armar para fisgar o público do que uma boa história e Lost, mesmo com os percalços, soube fazer isso de forma primorosa.

Daiana Sigiliano é jornalista, especializada em jornalismo multiplataforma e pesquisadora do EraTransmídia. Também é membro do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva da Universidade Metodista de São Paulo (2013) e do Grupo de pesquisa em Redes, Ambientes Imersivos e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora (2014).