A INTRODUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARE NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

Tv DIGITAL

A INTRODUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARE NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL, APRESENTADA NA PRIMEIRA PARTE DESTE ARTIGO, DEVE SER PLANEJADA A FIM DE CONVERGIR COM VÁRIAS TECNOLOGIAS E MÍDIAS DIFERENTES E EVITAR PROBLEMAS DURANTE A VEICULAÇÃO DA PROGRAMAÇÃO.

por Valdecir Becker

Software na produção audiovisual – Final

Levantamento dos requisitos
Levantar os requisitos de usabilidade
Um dos temas que tem gerado grande debate nos fóruns de desenvolvedores de aplicações para TV digital, está relacionado ao uso e a compreensão dos novos recursos. “Um dos maiores desafios da TV interativa é aprender a trabalhar com ela” [8]. Isso pode ser retratado tanto do ponto de vista dos telespectadores, como das empresas de radiodifusão, onde o desafio está na descoberta da “maneira de comunicação mais apropriada para que este novo meio tenha sucesso” [8].
Isso se agrava ainda mais num País como o Brasil, onde os índices de escolaridade são extremamente baixos. Compreender e usar os novos serviços da TV representa desafio adicional, uma vez que menos de 1/3 da população tem familiaridade com a Internet ou qualquer outra tecnologia digital. Neste contexto, a usabilidade, entendida aqui como a melhor maneira de usar os novos recursos, tem papel central. De maneira mais ampla, a usabilidade é definida como uma medida da qualidade da experiência do usuário ao interagir com alguma coisa, que pode ser um site na Internet, um aplicativo de software tradicional, ou qualquer outro dispositivo que o usuário possa operar e usar de alguma forma [9]. Pode ser resumida em cinco atributos:

“A qualidade da aplicação interativa é essencial para propiciar ao usuário a sensação de bem-estar advinda da realização da tarefa desejada.”
• Facilidade de aprendizado – o usuário rapidamente consegue explorar o sistema e realizar suas tarefas;
• Eficiência de uso – tendo aprendido a interagir com o sistema, o usuário atinge níveis altos de produtividade na realização de suas tarefas;
• Facilidade de memorização – após certo período sem utilizá-lo, o usuário não freqüente é capaz de retornar ao sistema e realizar suas tarefas sem a necessidade de reaprender como interagir com ele;
• Baixa taxa de erros – o usuário realiza suas tarefas sem maiores transtornos e é capaz de recuperar erros, caso ocorram;
• Satisfação subjetiva – o usuário considera agradável a interação com o sistema e se sente subjetivamente satisfeito com ele.
A completa compreensão desses atributos e das demais recomendações de usabilidade é fundamental para a definição das interfaces a serem projetadas para as aplicações. De maneira geral, cada middleware define o número de cores, a tipologia, resolução e demais componentes fundamentais para o desenvolvimento das aplicações [10].

Levantar os requisitos de qualidade
A qualidade da aplicação interativa é essencial para propiciar ao usuário a sensação de bem-estar advinda da realização da tarefa desejada. Como já foi visto, a qualidade é a adequação ao propósito pretendido, considerando o software a partir de uma perspectiva externa. Além disso, “os usuários julgam que um software é de alta qualidade se ele faz o que eles querem que faça, de maneira que seja fácil de aprender e utilizar” [4].
Os usuários de uma aplicação interativa esperam que ela responda rapidamente as ações do controle remoto – essa demora não pode ser muito maior do que o tempo levado para a troca de canais – e que o entendimento seja rápido e fácil.
A tolerância e recuperação de falhas também são fundamentais. Os travamentos são cotidianos na informática, onde não raro é necessário reiniciar o computador para continuar a execução das tarefas. No caso da televisão, isso é impensável. Em hipótese nenhuma a TV pode travar, devido à característica temporal do veículo. O que aconteceria se a TV travasse bem na hora da cobrança de pênaltis, numa decisão de campeonato?
O mesmo ocorre com defeitos, que podem influenciar negativamente usos futuros de aplicações interativas, interferindo na confiabilidade do usuário na aplicação.

Definir o plano de projeto
Essa atividade é fundamental para evitar atrasos na produção dos produtos audiovisuais. Vale lembrar que o vídeo e o software têm ciclos de vida diferentes. Enquanto que o ciclo de vida de um vídeo normalmente é curto, com poucas reprises, o software tem vida útil longa, com uso intenso e prolongado. O mesmo raciocínio é válido para a produção, onde o vídeo pode ser produzido em alguns minutos, no caso de programas noticiosos, enquanto o software, por mais simples que seja, leva alguns dias para funcionar plenamente.
Um bom plano de projeto deve contemplar pelo menos:
• Tempo de execução das atividades – relação do tempo necessário para a execução de cada atividade. Caso haja dúvidas sobre a duração das atividades, convém prever o tempo de execução com alguma folga.
• Relação das atividades predecessoras e sucessoras – uma série de atividades precisa estar finalizada para que outras possam iniciar. Aquelas fornecem insumos para estas, por isso não é possível que todas as atividades iniciem simultaneamente.
• Riscos – todo projeto tem riscos que podem atrapalhar ou atrasar o desenvolvimento. Os riscos podem ser divididos em internos, como cálculos errados da duração de uma atividade ou problemas no gerenciamento da equipe, e externos, como chuvas que impedem as filmagens ou aumento do preço do dólar que pode impactar nos preços de equipamentos que precisam ser adquiridos.
• Dependências externas – relação do que é necessário para o desenvolvimento do projeto, mas que não depende de esforços da equipe de desenvolvimento, como disponibilidade de tempo dos entrevistados ou aluguel de equipamentos. A avaliação equivocada das dependências externas pode trazer graves prejuízos ao cumprimento dos prazos.
• Marcos – é a representação do término de cada atividade, com o produto que ela gerou como subsídio para as seguintes. O último marco do projeto de desenvolvimento de um serviço para TV digital é a veiculação do programa.
• Caminho crítico – o caminho crítico é o maior tempo que o projeto pode consumir. É conseguido através da avaliação do tempo de duração de cada atividade, sem considerar as folgas. Convém prever a veiculação do programa, apenas para depois do tempo apontado pelo caminho crítico.

Escrever os ‘casos de uso’
O caso de uso descreve “a funcionalidade específica que um sistema, supostamente, deve desempenhar ou exibir, por meio da modelagem do diálogo que um usuário, um sistema externo ou outra entidade terá com o sistema a ser desenvolvido” [4]. Ou seja, os casos de uso devem descrever todas as ações possíveis de serem executadas pelo sistema, ou, no caso, pela aplicação interativa. Devem ser descritas desde as respostas que o sistema vai dar após uma interação com o usuário, até as comunicações que a software faz com o banco de dados via canal de interatividade, caso este seja utilizado.

Implementação
Desenvolvimento
Programar
Pode ser feita por um setor dentro da própria emissora de TV, ou por uma equipe terceirizada. Em ambos os casos, é fundamental que haja interação constante entre as equipes de concepção e de implementação. A linguagem de programação a ser utilizada é determinada pelo middleware, podendo variar de C, C++ e Java, até linguagens especialmente desenvolvidas para aplicações em TV digital, como a japonesa BML e a brasileira NCL. No caso do SBTVD-T, as aplicações deverão ser desenvolvidas na linguagem Java ou NCL.
Para o middleware europeu MHP já existem ferramentas de autoria para o desenvolvimento de aplicações, o que facilita a programação, mas não dispensa o conhecimento da lógica do desenvolvimento de software. Ainda não há nada no mercado que se aproxime das modernas ferramentas de autoria web, que dispensam qualquer conhecimento de mais baixo nível em programação.
Item importante no desenvolvimento é a orientação a objetos. Algumas linguagens, como C++ e Java, permitem o desenvolvimento de componentes reaproveitáveis. Isto é, um software orientado a objetos organiza e sistematiza os problemas e suas soluções, como conjuntos de objetos distintos, permitindo a fácil reutilização do código gerado, caso aplicações semelhantes sejam projetadas e desenvolvidas novamente. No caso das linguagens declarativas NCL e BML, esse conceito não se aplica.

Testar em laboratório
Os testes de laboratório representam uma etapa importante do desenvolvimento, pois permitem detectar imediatamente qualquer erro ou incompatibilidade com o middleware. Para a realização dos testes é necessário um emulador do middleware, para o qual está sendo feito o desenvolvimento.
Os testes de laboratório adquirem ainda maior importância porque, na maioria dos países europeus, não se construíram estações de teste de campo. Os programas são veiculados com base apenas nos testes de laboratório, que não são 100% confiáveis. Não raro são transmitidas aplicações com falhas ou defeitos.

Testes e veiculação
Testar em campo
Os testes de campo garantem a total compatibilidade da aplicação com o sistema de TV digital. Por mais sofisticados que sejam os laboratórios de desenvolvimento, sempre podem surgir problemas decorrentes de variáveis não consideradas. Também é importante checar a compatibilidade do software desenvolvido, com as plataformas de interatividade disponíveis no set-top box. Apesar das especificações mínimas, em vários países europeus há set-top boxes no mercado que não respeitam essa padronização.

Testar a aceitação
Como a interatividade ainda é algo totalmente novo para a grande maioria da população – exceção feita aos usuários das TVs digitais por assinatura, onde a interatividade já é explorada há alguns anos – avaliações criteriosas se tornam necessárias para identificar quais aplicações são bem aceitas pelos usuários. A transmissão de aplicações cuja aceitação é baixa pode condicionar negativamente os usuários para interações futuras.
Para os terminais de acesso os testes de aceitação são simples e podem ser feitos através dos registros de uso, uma espécie de log que fica armazenado no próprio set-top box e é enviado posteriormente à emissora de TV. Através dos registros de uso é possível saber se o usuário acessou a aplicação, quando acessou e se efetivou a interação pretendida.
Já para quem não dispõe de canal de interatividade, a avaliação é mais complicada, devendo ser restringida a entrevistas e pesquisas de opinião.

Avaliar o feedback dos telespectadores
As informações contidas nos registros de uso e nas pesquisas feitas para avaliar a aceitação da aplicação podem formar um banco de dados que permite, inicialmente, avaliar se a aplicação foi bem aceita ou não e, depois, identificar tendências para desenvolver novas aplicações. Essa avaliação é semelhante ao que é feito atualmente com programas de TV já no ar, ou com pilotos de programas novos.

Evoluir a aplicação
Através da avaliação feita na atividade anterior, é possível adaptar a aplicação para atender as expectativas dos usuários. Essas adaptações podem se restringir ao tipo de informação oferecida na aplicação ou englobar a reestruturação da mesma, caso seja necessário.

Reiniciar o processo
Finalizado o processo, novas idéias deverão surgir com base no banco de dados montado nas atividades anteriores. Dessa forma, o processo é reiniciado, com fluxo melhor de informações e melhor gestão dessas informações durante o desenvolvimento das aplicações. Dificuldades enfrentadas no começo tendem a ser minimizadas com o passar do tempo.
Para finalizar, é importante considerar ainda mais duas variáveis, que atingem todo o projeto: o tempo e a convergência tecnológica. Na televisão, todos os programas têm hora para começar e para terminar, o que é respeitado religiosamente, com poucas exceções de programas ao vivo. Isso implica velocidade de produção extremante alta: não é raro acontecer de uma parte do programa ser produzida e editada enquanto outra está no ar.
Já o desenvolvimento de software é feito em outro ritmo, com prazos melhor avaliados e sem a necessidade temporal dos programas televisivos. Essa aparente dicotomia precisa ser bem avaliada e projetada conforme um planejamento prévio da emissora de TV, sob pena de haver problemas de software durante a veiculação da programação, o que seria desastroso do ponto de vista da audiência e da publicidade.
A convergência tecnológica permite que a mesma atração seja veiculada em várias tecnologias e mídias diferentes, como TV, celular, Internet, DVD entre outras. A TV digital terá que conviver com essa nova realidade, onde a interoperabilidade é palavra chave em qualquer produção de conteúdo. Um exemplo dessa tendência é fornecido pela TV inglesa BBC, que recentemente disponibilizou gratuitamente na Internet 50% da programação de outono para download, ao mesmo tempo em que trechos dos melhores programas de humor eram oferecidos para download para celular.
Segundo os executivos da emissora, os produtores precisam pensar num ciclo de vida para os produtos: TV, celular, DVD, jogos etc. Os novos projetos já têm que ser planejados nessas várias mídias, com novas formas de narrativas e de abordagens dos recursos interativos que começam a se desenvolver.

Conclusão
Este trabalho abordou a introdução do desenvolvimento de software na atividade da produção audiovisual. Boa parte da metodologia apresentada foi baseada nos processos e modelagens da engenharia de software. Porém, essas similaridades se manifestam principalmente no desenvolvimento e administração do projeto e nas fases de Concepção e Levantamento dos requisitos, que estão mais centradas no software. Foram feitas adaptações que englobam as especificidades e as peculiaridades da televisão, com processos totalmente diferentes e onde o software é um adicional, e não a razão de ser do sistema, como acontece na informática. Dessa forma, atingiu-se uma metodologia mais coerente e condizente com as características do meio televisivo.
Não se entrou em detalhes de programação por acreditar que essa é uma tarefa mais simples, amplamente discutida na literatura e com fácil acesso na Internet. A concepção da aplicação, por outro lado, ainda carece de abordagens pragmáticas. Há pouco material disponível sobre a produção de software para TV digital e, menos ainda, comparando os processos intrínsecos a cada área. Com este trabalho, buscou-se avançar na convergência entre conteúdos e mídias, elaborando padrões comuns de produção. Os processos foram definidos com base na experiência do autor com a produção em projetos científicos sobre TV digital e mapeando processo de produção em países onde a interatividade na TV já está avançada. No entanto, essa área carece de mais estudos e de testes amplos, para que se chegue a algo parecido com os manuais de produção para TV, amplamente comercializados e usados por todos os produtores. _a

7 Referência  – [1] GAWLINSKI, Mark (2003). “Interactive television production”. Oxford: Focal Press.
[2] BBC (2004). British Broadcast Corporation. “Progress towards achieving digital switchover: a BBC report to the Government”. BBC, Londres.
[3] CGI.br. Comitê Gestor da Internet no Brasil. “CGI.br divulga indicadores inéditos sobre a internet no país”. São Paulo, 24 de novembro de 2005. Disponível em <www.cgi.br>. Acesso em 24/11/2006.
[4] PFLEEGER, Shari Lawrence (2004). “Engenharia de software: teoria e prática”. São Paulo: Prentice Hall.
[5] WATTS, Harris (1990). “On camera: o curso de produção de filme e vídeo da BBC”. São Paulo: Summus.
[6] CRÓCOMO, Fernando Antônio. (2004). TV digital e produção interativa: a comunidade recebe e manda notícias. Florianópolis, 2004. 189 f. Tese (doutorado em Engenharia de Produção) – Centro Tecnológico, Universidade Federal de Santa Catarina.
[7] LUGMAIR, Artur; NIIRANEN, Samuli; KALLI, Seppo (2004). “Digital Interactive TV and Metadata”. New York: Springer-Verlag.
[8] SOUTO MAIOR, Marcelo (2002). A TV interativa e seus caminhos. Campinas, 2002. 72 f. Dissertação Final de Mestrado Profissional (Mestrado em Computação) – Instituto de Computação, Universidade Estadual de Campinas.
[9] NIELSEN, Jacob (1993). “Usability Engineering”. Boston: Academic Press
[10] MHP (2005). Multmedia Home Platform. ETSI ES 201 812 V1.1.1 – European Telecommunications Standards Institute. Digital Video Broadcasting: Multimedia Home Platform Specification 1.0.3, 2003.
[11] BECKER, Valdecir; PICCIONI, Carlos; MONTEZ, Carlos; HERWEG FILHO, Günter H (2005). Datacasting e Desenvolvimento de Serviços e Aplicações para TV Digital Interativa. In: TEIXEIRA, César Augusto Camillo; BARRÉRE, Eduardo; ABRÃO, Iran Calixto (Org). Web e Multimídia: Desafios e Soluções. Poços de Caldas: PUC-Minas.
[12] MONTEZ, Carlos; BECKER, Valdecir (2005). “TV Digital Interativa: conceitos, desafios e perspectives para o Brasil”. Florianópolis: Editora da UFSC.
[13] BECKER, Valdecir (2006). Concepção e desenvolvimento de aplicações interativas para TV digital. Tese de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006.
[14] BERNARDO, Nuno (2002). “O guia prático da produção de televisão interactiva”. Porto: Centro Atlântico.
[15] MORRIS, Steven; SMITH-CHAIGNEAU, Anthony (2005). “Interactive television standards”. United States: Elsevier Inc.

O Autor – Valdecir Becker é jornalista, com mestrado em Engenharia e Gestão do Conhecimento
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Título Original: Desenvolvimento de software na produção audiovisual para TV digital