INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DA TV DIGITAL

TV DIGITAL DE PONTA A PONTA

 

Das vantagens da digitalização
Muito se fala em digitalização como o Santo Graal da tecnologia, mas nem sempre a extensão desta expressão é compreendida. É comum vermos no mundo da publicidade uma associação direta entre “digital” e “qualidade”, mas nem sempre isso é verdade. As razões para se “digitalizar um processo” raramente têm como principal objetivo a melhoria da qualidade do serviço. Veja o exemplo da telefonia celular. Num passado não muito distante a telefonia celular analógica era privilégio de poucos, porque o serviço era muito limitado na quantidade de acessos simultâneos. Cada aparelho de celular ocupava três canais de freqüência dedicados (dois de áudio e um de controle) e assim os canais disponíveis ao redor de uma célula se esgotavam rapidamente. A digitalização trouxe a multiplexação em tempo e em frequência, o que multiplicou a quantidade de acessos simultâneos possíveis em cada célula. Isto permitiu a popularização do serviço de telefonia móvel, fenômeno comercial e de inclusão social.

Mas e a qualidade de voz? Deixando de existir um canal (analógico) dedicado para cada interlocutor a inteligibilidade da conversação ficou sujeita aos “parâmetros de qualidade” desejados pela operadora. Não é difícil entender que, da mesma forma como fazem as operadoras de TV por assinatura, a prioridade é a quantidade de canais, e não a qualidade de imagem de cada um deles. Estes são exemplos em que a digitalização não favoreceu a qualidade e sim, o aproveitamento do espectro de freqüências.

Mas o contrário também acontece. Os antigos processos de distribuição de sons através de discos de vinil ou fitas analógicas sofriam degradação com o tempo e a cada nova geração (cópia do material) o áudio tinha uma degradação irrecuperável. Formatos de distribuição digitais não comprimidos ou pouco comprimidos tais como CDs ou Fitas de vídeo digitais eliminaram o problema da multigeração e permitiram a preservação (com a qualidade idêntica à original) eterna dos acervos audiovisuais.

É possível então reunir a racionalização de recursos com a preservação da qualidade? Aresposta é sim, desde que haja engenharia. Assim como em todas as áreas da tecnologia a engenharia de sistemas pode contribuir para otimizar os recursos sem ferir a qualidade, estabelecendo relações de compromisso compatíveis com o nível de satisfação que se deseja para o espectador.

Por onde começar?
Se olharmos para as emissoras brasileiras e estrangeiras, atualmente, teremos todo tipo de exemplos, bons e ruins, do emprego de técnicas de digitalização de processos, além de outras em que ainda se trabalha com arquiteturas “clássicas”. Por arquiteturas clássicas entendam-se ligações ponto a ponto através de cabos de áudio e vídeo (ainda que estes já sejam digitais), ausência de um sistema de gerenciamento de arquivos digital, sistemas de gravação, exibição e produção baseados em VTs (Video Tapes). Mas não basta ser tapeless nem ter o melhor sistema de MAM (Media Access Management) do mundo se a qualidade não for preservada. E para isto é preciso pensar não apenas na qualidade de produção e exibição, mas também nos processos de geração para diversas plataformas que proliferam atualmente, indo muito além da exibição de canais lineares. Olhando para todas as demandas de eficiência e qualidade pode se ficar atordoado com tantas necessidades urgentes! É preciso adotar algum critério para começar. É preciso ir devagar, pois este tipo de mudança afeta todos os processos dentro de uma emissora. Falarei mais sobre isso adiante.

Uma sugestão é começar pela área de exibição, onde economias substanciais podem ser apuradas em um curto prazo de tempo e com baixíssimo custo. O exemplo mais ilustrativo é aquele em que o produtor finaliza seu programa de uma hora de duração e o entrega para exibir. A área de exibição pega sua fita, insere em um VT, insere uma fita virgem em outro VT e faz uma cópia, afinal de contas, quem tem um não tem nenhum. A cópia é conferida em sua totalidade usando-se outro VT. Estando ok a gravação da cópia, ambas as fitas são encaminhadas para o controle mestre, onde são exibidas em paralelo. Muitas vezes elas retornam para a exibição num horário alternativo, ao final do qual a exibição de uma hora de material terá consumido sete horas de cabeças de VT rodando. O custo de manutenção de máquinas de VT tem ficado cada dia mais caro, e o tsunami que destruiu a fábrica da Sony tornou as coisas ainda piores. Uma cabeça de VT digital que custa em torno de 20 mil dólares e dura lá suas mil horas, pode representar um dos maiores custos à manutenção de uma emissora.

24 h x 365 x R$ 20.000/1000 x 7 = 1,2 milhões por ano só de cabeças de VT para a exibição de um canal de vídeo. (Figura 2)

Alternativamente, a emissora que adquire dois servidores de vídeo, para os quais desembolsará menos de R$100 mil, e fizer o ingest do material a ser exibido em um dos servidores, copiar os arquivos para o servidor redundante e conseguir mantê-los pelo menos até o momento da reprise terá que arcar com uma eventual troca de um ou dois hard disks ao longo de cinco anos. O custo operacional desta solução é pelo menos sete vezes menor que o processo clássico. Não é possível ignorar este tipo de economia e este passo pode ser dado com um mínimo de esforço e investimento. (Figura 3)

A partir deste, pode-se pensar na aquisição, na contribuição, na edição e no arquivamento. Em breve a área de captação vai perceber que se o formato de gravação selecionado na câmera não estiver de acordo com o formato de edição, o processo todo será impactado. Esta é a principal característica da mudança de filosofia. Toda etapa de produção afeta as etapas subsequentes. Se determinado codec da câmera não roda na ilha de edição (muitas emissoras têm um legado grande de equipamento aproveitáveis após a digitalização) ainda é possível contornar a situação fazendo ligações “tapeless” mas não “videoless”, onde se abre o vídeo banda-base para recomprimí-lo no codec utilizado pela ilha. Não é bonito, mas em última análise é o que os softwares de transcodificação de mídia fazem, só que mais lentamente.

Qual taxa? Qual codec?
Antigamente era fácil entender os formatos de vídeo. PAL-M ou NTSC? Transcodificá-los era mais um desafio no sentido de manter a qualidade do que a compatibilidade. Hoje a situação é inversa. É fácil se perder na miríade de possíveis combinações entre taxas, formatos, codecs e encapsuladores, o que podem gerar milhares de combinações possíveis. Se não tentarmos manter um mínimo de apego a determinado padrão fica fácil prejudicar o processo pelo simples excesso de opções.

O primeiro passo é definir o codec, baseado no tipo de material que se deseja produzir e nos equipamentos que se deseja manter. Se, por exemplo, existir um parque de ilhas de edição que priorize determinado formato este pode ser tomado como requisito para as camcorders, servidores de gravação e os servidores de exibição. Assim, não haverá necessidade de recomprimir os vídeos captados, nem depois de editados.

Taxas comuns são:
25 Mbit/s para jornalismo em SD
50 Mbit/s para jornalismo HD ou produção SD
100 Mbit/s para produção HD

Lembrando que na transmissão HD é possível até 18 Mbit/s no sinal do ar, ainda que em H.264, o que costuma ser equivalente ao dobro em MPEG-2, por exemplo.

Quando se pode partir do zero, é possível adotar um codec único e uma grande aposta atualmente é o H.264, com diversos servidores ilhas e câmeras suportando este codec, que está se tornando algo como um verdadeiro padrão de mercado. DVCPRO, MPEG-2IMX e MPEG-2 ainda terão sua importância por muitos anos, embora a tendência seja que estes se tornem menos comuns em sistemas novos. Restará ainda que a engenharia defina o encapsulador, uma das menos compreendidas facetas da produção tapeless. Os fabricantes têm sido extremamente criativos no sentido de não compatibilizar equipamentos entre eles, e para isso criaram diversas versões de encapsuladores que buscavam padronização. O maior exemplo são os diferentes MXF Op-1a e Opatom, algo que tem perturbado a vida daqueles que não podem contar com soluções de um único fornecedor. Às vezes a saída vem de onde menos se espera. Uma ilha de edição é compatível com MPEG-IMX, consagrado formato de gravação digital da Sony. Uma compatibilidade pensada para VTs permitiu utilizar este codec diretamente em servidores de exibição, que provavelmente foram dotados de suporte a este codec pelo mesmo motivo – ser compatível com os VT IMX. Em resumo, algo pensado para tornar viável uma compatibilização com fitas de gravação em duas etapas de produção viabilizaram a criação de um fluxo tapeless entre a ilha e o servidor de exibição! Com certeza nenhum dos três fabricantes desejou isso um dia, muito pelo contrário!

Este tipo de exemplo mostra como as etapas são todas interligadas, e ignorar qualquer uma delas trará prejuízos a médio prazo, seja na manutenção, seja na necessidade de equipamentos adicionais de conversão de vídeo. Um benefício adicional será a preservação da qualidade ao longo das diferentes etapas de produção, que terminam apenas no acervo digital da emissora, o qual terá que ser um dia resgatado e reaproveitado, e aí mais uma transcodificação poderá ser evitada. Quanto antes a emissora acordar para isso maior será a fidelidade com a qual as gerações futuras poderão ter acesso a estes materiais.

Novas mídias
Muito tem se falado a respeito das novas mídias, e o objetivo deste artigo não é explorar este assunto, mas é preciso entender que elas farão uso de todo o material das produções pensadas para o canal linear. Isto cria mais um requisito no planejamento de uma planta tapeless. Ainda nos tempos da TV analógica, quando a internet de banda larga ainda era incipiente teve-se a brilhante idéia de permitir o acesso aos canais de TV através da web. Uma placa de captura, ligada a um servidor de streaming era todo o necessário para se fazer uma transmissão simultânea para qualquer lugar do mundo. As perspectivas eram animadoras, e o custo bastante baixo (pelo menos do lado da captação do material).

Mas rapidamente começaram a surgir novos requisitos. Por que não permitir ao internauta assistir ao noticiário em um horário alternativo? Aí a coisa complica bastante, pelo menos para a emissora que não estava preparada.

Veja como tudo se torna fácil quando se está preparado. Amanhã aparece uma demanda do tipo: “Preciso de um videozinho para colocar na internet, daquele telejornal que vai ao ar diariamente.” É um pedido aparentemente simples, e realmente será se, por exemplo, já existir uma versão em baixa resolução, um H.264, wma, flv ou qualquer outro formato adequado ao tráfego web. Basta copiar o arquivo para o servidor web e apontar corretamente para ele. Mesmo que o arquivo ainda esteja em alta resolução, ou num codec diferente, a tarefa se resume a apontar um recompressor ao arquivo original e direcionar o arquivo mais leve para o seu destino final. Uma rotina a mais no sistema de MAM muitas vezes é o suficiente para automatizar este tipo de demanda.

Agora imagine esta mesma demanda em um ambiente clássico. Um VT de ingest, uma ilha de edição dedicada, alguns operadores ao longo da semana, exportação manual de arquivos, manutenções, cabeças etc. Isto multiplicado pela quantidade de demandas dos outros programas que também irão querer entrar na web e o custo explode.

Tudo isso ilustra o quanto é importante digitalizar os processos. Mas é preciso entender também que o fator crucial não é a tecnologia, e sim, como em tudo na vida são as pessoas. Se as mudanças de processo não forem acompanhadas de uma renovação na maneira de trabalhar das pessoas nenhum sistema será capaz de tornar a produção de conteúdo melhor. E ainda corre-se o risco de ter que enfrentar resistências desnecessárias à implantação das mudanças. Afinal de contas, tudo que é novo assusta. As pessoas não gostam de sair da zona de conforto, não querem aprender coisas novas, não querem mudar a rotina. Tudo isso é natural e não há como negar: os agentes da mudança serão condenados. Cabe a nós entendermos e abraçarmos a causa. Não há como delegar neste caso. A engenharia terá que capitanear também as mudanças de filosofia. É preciso eleger parceiros fiéis e capazes nas áreas de programação, produção e operações, aproximá-los das idéias e com eles apresentar as mudanças às equipes. Aí o projeto irá decolar. Quando todos entenderem a necessidade de mudança, algo incrível acontecerá: O passado será esquecido com uma velocidade surpreendente, até para quem capitaneou a mudança de processos. A engenharia será questionada não porque a mudança ocorreu, mas porque não ocorreu logo!

Existem diversos exemplos de emissoras ao redor do mundo que passaram por este processo, mas é preciso ressaltar a importância do respeito à cultura local da empresa em que se deseja implantar as mudanças. O que funciona em Londres não necessariamente funciona no interior da Bolívia e para tornar os sistemas mais aceitáveis é fundamental primeiro compreender como a empresa trabalhava até então. É preciso partir daí senão o fracasso será completo. Ter uma equipe de engenharia própria é uma coisa que poucas empresas podem custear, mas, longe de ser um luxo, é uma necessidade para aqueles que visam otimizar os processos. Empresas terceirizadas podem muito bem realizar belas implantações, e eficientes contratos de suporte, mas se não forem orientadas por pessoas que entendam a fundo como o projeto se encaixará dentro da empresa elas terão grandes dificuldades de realizar um trabalho relevante. O suporte diário também requer uma equipe dedicada e coesa, senão interrupções fatalmente acontecerão.

Novas possibilidades
A radiodifusão, ou pelo menos aquela que conhecemos, vem perdendo audiência diariamente. Hoje é completamente absurdo pensar em uma emissora relevante que ignore os caminhos alternativos de distribuição de conteúdo. Pergunte a qualquer um com menos de trinta anos se ele assiste TV como conhecemos. É impressionante a impaciência deste público. A transmissão linear, no horário definido pela emissora não consegue mais competir com a multiplicidade de opções que as novas mídias oferecem. Pelo menos nos grandes centros e àqueles que dispõem de banda-larga, o que para felicidade dos radiodifusores ainda representa menos de 5% da população. Mas isto também é uma questão de tempo. Lembro-me quando, há alguns anos caminhando por um subúrbio de Miami percebi marcas de spray nas calçadas da rua. Quando perguntei o que eram, fui informado de que se tratava de uma marcação para instalação de fibras para acesso às casas daquela rua. Isso ainda vai demorar talvez uns dez anos para chegar ao Brasil, mas a cada dia a avidez por acessos alternativos aumenta.

O que fazer então? O surgimento dos novos canais de acesso não significa que os canais tradicionais deixem de existir. Muito pelo contrário. Na grande São Paulo, por exemplo, 50% dos tespectadores assistem à TV através das transmissões analógicas pelo ar. Mesmo com o cabo, a web, os gadgets e tudo o mais, a boa e velha radiodifusão pelo ar permanece. Em alguns anos serão desligadas as transmissões pelo ar analógicas no Brasil, e aí reside a maior oportunidade de um ressurgimento da radiodifusão. A estratificação da audiência não significa que devamos abandonar as formas de distribuição tradicionais. As possibilidades de multiprogramação, interatividade, incremento na qualidade da imagem são infinitas, e ainda não foram devidamente exploradas. As TVs conectadas fornecem o tão necessário canal de retorno para a interatividade e, apesar de serem a porta de entrada para outros conteúdos não-broadcast permitem coexistência vantajosa para todos. Pense nos canais de TV como mais alguns sites disponíveis a um browser, mas com a capacidade de download dedicada de 20 Mbit/s. Ali o radiodifusor pode mesclar um ou mais canais, aplicativos interativos, serviços públicos e até mesmo seu portal web (pelo ar), para atrair potenciais internautas que ainda não tiveram um motivo para ligar a grande tela à grande rede. O desenvolvimento de aplicativos Ginga, ou mesmo web, é barato se comparado a um programa de TV e pode render uma audiência adicional importante, além de servir como marketing gratuito para o portal da emissora. A transmissão digital pelo ar aumenta a acessibilidade dos portadores de deficiências visuais e auditivas, na medida em que propicia mais canais de áudio, vídeo e dados auxiliares como legendas ocultas. Novamente são serviços de relativamente baixo custo de produção que permitem resgatar uma parcela de audiência não servida pela TV analógica.

Interatividade
Todas as emissoras têm atualmente algum aplicativo interativo disponível nos canais digitais. Estes aplicativos se assemelham em muito a menus de DVDs, com fotos e textos apenas. Aplicativos mais sofisticados começam a ser estudados, mas será necessário melhorar o poder de armazenamento e processamento dos aparelhos de TV. Uma revisão da norma para expandir as funcionalidades da interatividade também seria bem vinda. Alguns grupos de trabalho e algumas empresas têm se dedicado a desenvolver esta que é uma das maiores promessas da TV digital desde seu começo. Aplicativos que unem o carrossel de dados Ginga à conectividade web são promissores, na medida em que resolvem a grande deficiência da interatividade pelo ar que é a ausência do canal de retorno. Outra vantagem é despertar no espectador o interesse em conectar sua TV à web.

O poder de processamento dos set-top boxes e aparelhos de TV é hoje menor do que aquele dos smartphones, com receptores de TV one seg. Para estes talvez seja possível pensar em aplicativos mais pesados, já hoje. A recepção móvel pode ser mais um motivador para o consumo de aplicativos deste tipo, e se pensarmos que estes aparelhos são também pontos de acesso web, o casamento também já é possível.

As limitações de processamento das TVs conectadas impedem o desenvolvimento de aplicativos mais complexos o que acaba limitando a atratividade dos mesmos. Ações de aproximação entre desenvolvedores de conteúdo, de hardware e middleware dos televisores, universidades e as associações de radiodifusores responsáveis pelas normas são fundamentais para mudar este quadro. As emissoras públicas e educativas têm como missão buscar este tipo de aproximação, visando o desenvolvimento de todos os envolvidos. O grande beneficiado será o espectador, que contará com mais um atrativo agregado à difusão digital.

 

 

 

Marcos é Gerente de Engenharia na TV Cultura – SP, graduado em Engenharia Eletrônica pela UFRJ . Email: marcoslucena@tvcultura .com .b