Convergência digital: O futuro da TV Aberta

Nº 151 – Junho 2015

por André Barbosa

ARTIGO

Televisão Digital Terrestre nunca foi utilizada no mundo em sua potencialidade, razão pela qual suas facilidades foram apresentadas ao público apenas parcialmente, ou mesmo “engavetadas” pela indústria de equipamentos eletroeletrônicos de recepção.
A razão da portabilidade, multiprogramação, interatividade com canal de retorno no ambiente da TVD não ter sido explorada a contento pode ser explicada por vários fatores, mas um se destaca por ser, ao certo, a raiz da questão: a avassaladora penetração da Rede Mundial (www) e todas as suas incríveis ofertas de acesso à informação.
Apesar do fato concreto apresentar um cenário transformador, neste início do século XXI, onde a disseminação da Internet de alta velocidade passa a ocupar o protagonismo entre as redes de distribuição de conteúdos, dois fatores fundamentais explicam porque este reinado não está, de modo algum, implantado e consolidado em todas as diferentes sociedades.
O primeiro, claro, diz respeito à infraestrutura, que permite a oferta e o acesso a Internet Banda Larga em todo planeta, mostrando-se escalável apenas onde há renda per capita e garantia de retorno do investimento. Nas regiões onde existem grandes bolsões de pobreza, o progresso chega devagar e para poucos, numa perversa construção que leva à formação de contingentes de bilhões de excluídos do cenário Web.
Em seguida, o próprio modelo econômico de entrega de conteúdos audiovisuais bidirecionais proposto pela tecnologia em IP (Internet Protocol), que privilegia a retribuição econômica pelo cidadão ao acesso da informação, com a expectativa de monetizar e remunerar cada segmento da cadeia de produção destes conteúdos, desde os produtores aos empacotadores e distribuidores.
Assim, o que era uma oferta gratuita de acesso (ou uma gratuidade indireta, pois o preço desta oferta estaria embutido no produto vendido ao consumidor) passa a ser diretamente pago pelo cidadão. Nos Estados Unidos, um fenômeno de comportamento que atendam necessidades atemporais de uso dos dispositivos vem sendo objeto de atenção do setor de informação e comunicação: o “cord-cutting”. Este fenômeno designa a migração expressiva de assinaturas das modalidades de TV paga com grade fixa para os novos serviços dos portais “on demand”, ou seja, sem que os espectadores sejam obrigados a atender a horários fixos de transmissão da programação, criando assim, a cultura por demanda.
Esta dinâmica, que vem sendo utilizada por um número cada vez maior de pessoas em todo mundo, gera uma cisão no interesse de uso entre grades fixas de programação -modelo usual da TV aberta e gratuita -, como também da TV a Cabo ou por Satélite. Surgem os formatos OTT (Over the Top) e VOD ( Video on demand ), onde os conteúdos audiovisuais são transmitidos pelas redes de telecomunicações e ofertados em portais multi-tela, e se pode escolher assistir, a qualquer tempo, o filme, série ou programa favorito. Os números atuais têm mostrado que os modelos OTT e VOD têm sido preferidos, em detrimento dos serviços de cabo ou satélite.
O mesmo não se da com a TV Terrestre, aberta e gratuita. Dados recentes de agências de pesquisa como Nielsen e Gallup mostram que, em 2014, a audiência deste modelo gratuito cresceu de 9% para 17%, com crescimento real de 90%. Por quê? Por que se utiliza da plataforma gratuita da radiodifusão para transmissão de programações Ao Vivo.
Podemos dizer que os que têm a banda larga na porta de casa vêm escolhendo, dentre as inúmeras ofertas disponíveis, as mais econômicas e que lhes satisfaçam.
Quem não tem banda larga (cerca de 4,6 bilhões de pessoas em todo o mundo), têm na comunicação por radiodifusão, rádio e TV abertas, o único modo de conhecer o que se passa, instruir-se e divertir-se.
A este cenário se poderia somar outro, o da disruptura. Um fator que coloca conceitos como economia de escala e processos de cauda longa em xeque, pressionados pelas formas e características da economia por nichos, posição mandatória do consumidor e oferta de dispositivos customizados.
A TV Terrestre Digital vem chegando lentamente, vencendo preconceitos e lutando com suas próprias vísceras por tornar-se o que, potencialmente, já o é: uma plataforma moderna, com facilidades que devem se ombrear a outras congêneres digitais, desde que vista pelo Poder Público e pela Sociedade como uma estrutura de informação que chega gratuitamente aos lares, e que a torna competitiva.

A NAB 2015 teve centenas de soluções via IP com workflowcompletos baseados em estruturas virtualizadas

E a convergência de mídias, rapidamente, o que é?
A convergência das mídias surge simultaneamente com a revolução digital, que nasceu com a cultura do computador como um “mediador da comunicação”. Desde o “Videotexto”, uma espécie de “Idade da Pedra da internet”, quando a linguagem verbal saltou do papel para a tela eletrônica, o computador passa a absorver outros sistemas de linguagem, traduz numericamente e devolve para nossos olhos na tela na sua forma original. Isso é chamado de convergência das mídias, ou seja, é quando tudo converge para o computador, somada à capacidade que a máquina tem de nos devolver essas linguagens como elas são originalmente.
Jenkins (2006) afirma que esta convergência de linguagens, por sua vez, chega munida de poderes que poderão revolucionar as ideias, o pensamento, o comportamento e a criatividade artística, tanto por parte do produtor quanto do receptor, que nesse momento também se hibridiza em sua relação com a obra, pois passa a ser ao mesmo tempo construtor, executor, emissor e receptor do projeto artístico. “Lembrem-se disto: a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final.”
E pensando na convergência como processo:
A TV Digital para a inclusão sociodigital.
A publicação da Portaria nº 481, 9 de julho de 2014(1), que determinou a distribuição de conversores e antenas digitais a todos os beneficiários do Bolsa Família do país, deu contorno às especificações mínimas para o conversor digital. Deixou, porém, indeterminados temas como a instalação dos equipamentos nos domicílios do Bolsa Família e a porta HDMI, cuja importância para atender as TVs sem conversor embutido – manufaturadas de 2008 a 2011 – é reconhecida pela própria indústria de recepção. Além do mais, não existem hoje conversores a disposição do mercado que não contenham este input HDMI presente mesmo nos zappers, sem middleware, só com processadores de áudio e vídeo. Com o HDMI, a TV aberta garante qualidade superior de resolução de imagem e vídeo; melhor do que o oferecido na TV Paga, que abrange tanto cabo quanto Sat.
O conversor com Ginga C que será distribuído para inscritos no Bolsa Família poderá criar, até mesmo, a possibilidade de levar a banda larga para pessoas carentes usando a transmissão pela TV, com controle total pela radiodifusão. E todos poderão ganhar com isso. Basta estabelecer modelos de negócios compatíveis com a renda dessas famílias. A “caixinha” não é só para TV, é uma integradora, convergente, para que esse público enorme, que ainda não tem a possibilidade de receber fibra óptica ou internet fixa, possa usar o canal de retorno por 3G ou 4G para ter acesso à web. Ao mesmo tempo, apresenta um novo modelo de negócio, uma nova fonte de renda para a radiodifusão.
A base de tudo isso está no desenvolvimento do Ginga completo, o Ginga Full, pois o que foi proposto inicialmente quando de sua inclusão nas normas UIT-R não foi discutido como possibilidade real, passível de normalização pela ABNT. A indústria de recepção fatiou estes protocolos e colocou como regra opcional o Ginga 1.0.
Assim se privilegiou a TV conectada, ao contrário dos princípios do SBTVD no sentido de trabalhar para trazer, e assegurar, dentre outros, os benefícios da interatividade.
Agora, o advento do apagão, somado à oportunidade de acesso aos recursos advindos do Edital de venda do espectro de 698 a 806 MHz, sugere a oportunidade de uso do chamado de Ginga C ou 3.0, privilegiando os serviços públicos. O Ginga C tem alguns protocolos que permitem a interatividade, vídeos dinâmicos e uma série de leituras de mídias previstas para utilizarem a linguagem IP convergida com o BTS (Broadcast Transport Streaming), linguagem específica para transporte audiovisual pela Televisão.
Notícias recém chegadas do grande mercado tecnológico do mundo, os EUA, dão conta que o broadcasting está sendo visto atualmente de outra forma, não só como a televisão linear do modelo em vigor, mas usado para convergir com outras formas de plataformas digitais.

© Foto: Madrilena Feitosa

Para o panorama brasileiro faltava desenvolver um teste de conceito e a empresa pública de comunicação pública, EBC, o fez através do projeto “Brasil 4D”. Inicialmente, em 2013, em João Pessoa, na Paraíba, onde instalou-se conversores e antenas externas de recepção em 100 residências de beneficiários do programa “Bolsa Família” para o acesso a aplicativos audiovisuais (HTML + BTS) sobre saúde, emprego, educação, aconselhamento financeiro, etc., com apoio de doze empresas privadas, três universidades, emissoras públicas, entidades do governo federal, municipal e do Banco Mundial. O projeto foi objeto de pesquisa do Banco Mundial( 2) que comprovou a eficácia da TVDi para a inclusão sociodigital, quando, após apenas 1 mês de uso:
• 72% dos entrevistados aprenderam a usar a TVDi;
• 64% perceberam redução de gastos com transporte e economia de tempo;
• 2% tiveram aumento real de renda;
E, segundo estudo da UNICAMP, a projeção de economia doméstica para um público potencial de 14 milhões de famílias beneficiadas, ao longo de 10 anos, é da ordem de R$ 7 milhões. Desde 2014 esta se testando esses conversores junto a beneficiários do Bolsa Família de Samambaia, periferia do Distrito Federal, com inovação na linguagem e entrada de conteúdos de serviços criptografados, como o acesso a conta bancária.
O perfil técnico da “caixinha” a ser adotada para os beneficiários do Bolsa Família prevê um hardware com porta USB externa para fazer conexão 3G (chip não incluído), com cachê de memória suficiente para reduzir a latência, possibilidade de colocar memória flash de 256 K e cartão de memória de até 16 Giga (não incluído), na perspectiva de se colocar um número maior de aplicativos, com a atualização remota, pelo ar, dos dados e vídeos. Ou seja, você carrega os vídeos de madrugada e os vídeos anteriores ou desaparecem ou irão para um repositório em nuvem (na tela existira um aplicativo para abrir essa nuvem e ter acesso à lista de aplicativos fora do carroussel de dados. Os novos ficarão embarcados no carroussel e disponíveis no memory card). O conversor passa a ter uma configuração similar a dos smartphones, PCs e outros equipamentos de informática.
Para produção do hardware há várias empresas interessadas. Recentemente, a Anatel reuniu cerca de sete empresas, nacionais e estrangeiras, para conversar.
O Fórum SBTVD fez o mesmo: 28 empresas participaram.
Por outro lado, a antena interna apresenta um grande risco de interferências, especialmente com o sinal 4G/ LTE. A antena externa, em escala, vai ficar muito barata e, conforme se verificou nos testes do programa Brasil 4D, mostrou-se eficaz para a migração analógico-digital.
Esse cenário coloca a TV aberta no mundo digital, com modelo de negócio convergente. Isso não tinha sido feito até agora no mundo, porque todos optaram por fazer o procedimento interativo por meio de IP. Foi o Brasil, junto com esse grupo todo, EBC, a ex Harris (hoje Imagine e Gates AIR), D-Link, Totvs, MecTronica, Spinner, Ebcom, Intacto, Oi e Ei-TV!, universidades e tantos outros que participaram desse projeto, que iniciaram esse movimento.
Paralelamente, a Anatel ficou de conversar sobre conexão com as operadoras, para que o chip de dados, que já existe no mercado, possa ter um preço acessível, a ser pago pelo próprio consumidor, seja por meio de uma política de contrapartida ou de política pública.
O beneficiário do Bolsa Família teria um pacote de dados franqueado mas, se ultrapassasse essa franquia, teria condições de arcar com um valor reduzido. Isso é uma coisa que precisa ser estudada, para garantir que esse conversor possa ser mais um canal de inclusão digital.
A questão é saber sobre a implantação do protocolo avançado do Ginga e saber se essa implantação será pública, aberta. A TV digital sempre foi software livre, código aberto e não pode ser diferente agora quando estamos falando de inclusão da população de baixa renda na TV digital, conforme determina o Decreto 4.920 que estabeleceu as diretrizes da TV digital brasileira.
Hoje a cobertura hegemônica da TV chega a 98% da TV analógica, e poderemos chegar, como pretende o MiniCom, a 93% dos lares com cobertura digital em 2018. Isso significa a possibilidade de receber as informações de dados digitais, transmitidas por broadcasting, gratuitamente. Tal cobertura será alcançada no nível nacional pela banda larga em curto espaço de tempo? Não cremos, infelizmente.
Podemos criar um atalho para a oferta de banda larga. E as operadoras não vão deixar de ganhar dinheiro. Ao contrário, com o modelo novo de canal de retorno, pode se ampliar para outras ofertas de pacotes. Precisamos da cooperação da iniciativa privada para isso. Seria uma grande oportunidade para a radiodifusão fazer ensaios com as agências de publicidade com conteúdos interativos.
Esta convergência já e uma realidade nos EUA. Pouco a pouco o OTT vem se tornando o modelo preferido de acesso ao audiovisual.

© Foto: EBC

Vamos deixar bem claro. Baixar aplicativos audiovisuais pela TV significa manter a primazia e o controle da transmissão pelo radiodifusor. Afinal, é através do seu play-out que os dados chegarão às residências:
1. Simultaneamente – característica única da radiodifusão; a Internet não conta com esta prerrogativa de um para todos, pelo limite de banda;
2. Com Segurança – transmissões radiodifundidas não estão sujeitas a hackers;
3. Com Maior Uso de Banda – dentro do espectro de 6Mhz o uso de apenas 0.5Mb já seria um espectro muito superior ao oferecido nas taxas de tráfego de dados negociados em nosso país;
4. Com a Negociação destes Serviços tendo seu protagonismo pela radiodifusão – Claro que haveria que mudar a lei de radiodifusão neste ponto, permitindo que o radiodifusor possa vender seu transporte broadcasting para dados e não apenas para conteúdos audiovisuais.
Assim criar-se-iam espaços de negociação para serviços interativos com canal de retorno e de overflow para OTT com as empresas telefônicas ainda com posição de força.
Para garantir o acesso da população de baixa renda à interatividade, a caixinha conversora deve se manter como esta configurada no Brasil 4D, ou seja, com implementação Ginga C (Java + NCL /Lua) em sua configuração básica, que permite ter conexão com a banda larga 4G ou 3G e a serviços públicos (não inclusos na caixinha). Essa configuração não impõe modelos.
Ela deixa a porta aberta para soluções futuras, para deixar um irremediável LEGADO. Mas para isso devera ter o Ginga C , porta HDMI e as configurações básicas de processamento com as entradas estabelecidas, sem inclusão no custo da caixinha de conexão e armazenamento.
Ela não terá conexão direta no Ginga que permite baixar aplicativos da Web (apesar de possível, se quisermos no futuro). Essa conexão poderá ser gratuita ou paga. São várias possibilidades que a Entidade Administradora da Migração – EAD vai decidir.

1) Requisitos mínimos para recepção do sinal digital, Anexo 1, Portaria 481/2014, do Ministério das Comunicações: I-Atender às normas ABNT NBR 15604/2007, receptores e suas atualizações, dispondo obrigatoriamente de controle remoto, interface USB, saídas de audio e vídeo via RF e saída de vídeo composto; II – Incorporar obrigatoriamente, capacidade de executar aplicações interativas, de acordo com as Normas ABNT NBR 15606-1, 15606-2, 15606-3, 15606-4 e 15606-6; III-Permitir a utilização dos recursos de acessibilidade previstos na Norma Complementar MC 01/2006, aprovada pela Portaria nº 310, de 27/7/2006.
(2) “Brasil 4D – Estudo de impacto socioeconômicos sobre a TV digital pública interativa”, 2013. Disponível em: http://www.ebc. com.br/sites/default/files/brasil_4d.pdf

André Barbosa é Superintendente de Suporte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), trabalhou como Assessor Especial do Ministério da Casa Civil e é doutor pela Universidade de São Paulo em Tecnologia e Estética da Comunicação.