A batalha atual das emissoras americanas

No dia 1º de abril, foi concluído mais um capítulo da batalha judicial que vem sendo travada, há mais de um ano, entre as grandes emissoras americanas e a Aereo, Inc., uma startup sediada em Nova York que tem tirado o sono – e possivelmente alguns milhões de dólares em direitos autorais – de broadcasters nos Estados Unidos. O caso dividiu os juízes responsáveis pelo julgamento, mas, até o momento, a Aereo tem saído como a parte vitoriosa.

 

Por Ioma Carvalho e Gustavo Quintella

ARTIGO

Adisputa iniciou-se em março de 2012, quando a Aereo começou a operar seus serviços após instalar milhares de micro antenas no telhado de um galpão na região do Brooklyn. O serviço funciona da seguinte forma: cada uma das micro antenas é locada pela Aereo para um de seus assinantes, os quais têm liberdade para decidir o canal aberto que irão assistir, se será ao vivo, via internet, ou qual programa irão gravar no servidor em nuvem da Aereo, para assistir posteriormente no dispositivo que desejar. Por esse serviço, o assinante paga US$ 8 por mês ou US$ 1 por 24 horas de programação.
Não foi por mero acaso que a Aereo escolheu a cidade de Nova York para inaugurar a prestação de seus serviços. Desde o julgamento do caso “Cablevision” em 2008, no qual foi dado ganho de causa à Cablevision em prejuízo às emissoras, Nova York passou a ser considerada o lugar mais propício para empreendedores no mercado de Internet TV. No episódio da Cablevision, as emissoras decidiram acionar judicialmente a Cablevision por considerarem que os serviços oferecidos violavam os direitos autorais das emissoras. A Cablevision ofereceu a cada um de seus assinantes um acesso remoto exclusivo a um disco rígido pessoal, localizado nas dependências da Cablevision, no qual os assinantes podem gravar os programas que escolherem.
Em razão da aplicação deste precedente ao caso atual, os executivos da Aereo demonstram ter acertado na escolha de Nova York como a cidade inaugural dos seus serviços, minimizando de forma considerável os riscos jurídicos envolvidos no seu lançamento.
Pelo mesmo motivo levantado no caso da Cablevision – alegação de violação de direitos autorais – as emissoras decidiram direcionar agora seus esforços legais para tentar impedir a consolidação e a expansão do serviço prestado pela Aereo. A complexa discussão jurídica envolvida neste caso se desenvolve, principalmente, em torno da seguinte questão: os serviços da Aereo constituem exibições públicas do conteúdo produzido pelas emissoras ou consistem em meras exibições privadas, multiplicadas milhares de vezes, para cada um de seus assinantes?
De acordo com o que estabelece o Copyright Act de 1976, os detentores de direitos autorais têm a faculdade exclusiva de realizar exibições públicas de suas obras. Em razão dessa previsão legal, qualquer exibição pública de tais obras depende do consentimento prévio do detentor dos direitos autorais.
Como a Aereo não possui autorização das emissoras para retransmitir seu conteúdo (por não estar disposta a pagar taxas de retransmissão e valores de licenças), a startup vem defendendo vigorosamente a tese de que seus serviços não constituem exibições públicas. Segundo a Aereo, cada uma de suas milhares de antenas é responsável por viabilizar uma única dentre outras milhares de exibições privadas – simultâneas ou não – para cada um de seus assinantes assinantes. Como, de acordo com o Copyright Act, exibições privadas não constituem nenhuma violação a direitos autorais, a Aereo está usando esse argumento para convencer a justiça americana de que seus serviços se enquadram na exceção da lei e podem continuar sendo oferecidos sem qualquer consentimento ou pagamento às emissoras.
Após terem negado o seu pedido liminar para a suspensão dos serviços da Aereo, as emissoras americanas recorreram à segunda instância do judiciário (Second Circuit Court of Appeals) visando reverter a derrota sofrida na instância inferior. No entanto, em 1º de abril deste ano, o tribunal anunciou ter decidido, por maioria, manter a decisão que negara a liminar, acatando a tese da Aereo de que seu serviço não pode ser considerado uma exibição pública, inexistindo, assim, violação a direitos autorais. Essa vitória garantiu à Aereo a segurança jurídica necessária para expandir seus serviços para a cidade de Boston, onde iniciou suas operações no último dia 15 de maio.
Em que pese esta sonora derrota dos broadcasters, o julgamento de seu recurso contou com a decisão dissonante de um dos três juízes designados para decidir sobre o recurso das emissoras. Essa decisão foi a primeira manifestação da justiça americana favorável às emissoras no caso contra a Aereo. Denny Chin, o juiz vencido pela maioria, entendeu que não faz sentido considerar que as milhares de transmissões e exibições prestadas pela Aereo constituem meras exibições privadas. Em sua fundamentação, o juiz assinalou de forma enfática que o sistema tecnológico da Aereo foi deliberadamente arquitetado para escapar do alcance do Copyright Act, aproveitando- -se de um buraco na lei que, segundo ele, não foi planejado pelo legislador federal, razão pela qual deveria ser acolhido o pedido liminar das emissoras.
O juiz ainda ilustrou sua fundamentação com o seguinte exemplo: a Aereo seria capaz de retransmitir o Super Bowl, ao vivo, para 50.000 assinantes e, como cada assinante tem sua antena e sua cópia do programa, essas seriam exibições “privadas”. Para ele, no entanto, essa retransmissão do Super Bowl, que seria realizada sem o consentimento do detentor dos direitos de transmissão, constituiria uma exibição “muito pública” e, portanto, ilegal sob a ótica do Copyright Act.
A própria Cablevision – que já passou por seu momento de forte atrito com as emissoras – posicionou-se contra a pretensão da Aereo, após ter ciência de que o seu caso, de 2008, estava sendo utilizado pelos advogados da Aereo como o principal precedente para a sustentação da defesa. Em setembro de 2012, a Cablevision apresentou à justiça argumentos que reforçavam o pedido dos broadcasters e buscou esclarecer aos juízes as diferenças existentes entre os dois casos. A principal diferença apontada é o fato de que a Cablevision paga às emissoras as devidas taxas de retransmissão e os valores das licenças necessárias. Por outro lado, a Aereo não paga nada e ainda recebe dos assinantes.
Após sua segunda derrota no pedido pela decisão liminar, os advogados das emissoras ingressaram com mais um recurso para que o seu pedido fosse analisado pelo plenário da Second Circuit Court of Appeals, apesar de advogados envolvidos no caso considerarem a chance de vitória improvável.
Na verdade, a maior esperança dos broadcasters está em outra frente de batalha, do outro lado dos Estados Unidos, em uma ação judicial que foi ajuizada no estado da Califórnia, por algumas emissoras, contra uma empresa chamada Aereokiller. Essa empresa foi criada com o objetivo de prestar, na Califórnia, serviços muito semelhantes aos prestados pela Aereo em Nova York, também pela atribuição de uma antena individual a cada um de seus assinantes, os quais poderiam assistir, assim, televisão via internet. Nesse caso, os broadcasters têm tido mais sucesso, basicamente porque na Califórnia não há o precedente vinculante da Cablevision ou qualquer outro precedente semelhante. Em razão disso, um juiz federal da Califórnia acatou os argumentos das emissoras e concedeu a elas, em dezembro passado, uma liminar que suspendeu os serviços oferecidos pela Aereokiller. A liminar foi recorrida pela Aereokiller e seu recurso atualmente aguarda julgamento pela Ninth Circuit Court of Appeals, que tem competência sobre a Califórnia e outros Estados do oeste americano.
Os advogados das emissoras apostam que uma vitória definitiva no caso contra a Aereokiller aumentaria muito as chances de que, futuramente, uma decisão definitiva desfavorável às emissoras no caso da Aereo seja revertida na Suprema Corte dos Estados Unidos. A estratégia dos advogados é, resumidamente, a seguinte: caso os esforços contra a Aereo não resultem em êxito, mas, por outro lado, as emissoras consigam uma vitória definitiva contra a Aereokiller, a decisão deste último caso poderá ser levada à Suprema Corte com o objetivo de demonstrar aos juízes que a decisão do caso Aereo deve ser revertida.
Caso, ao fim da longa trilha judicial, a Aereo obtenha sucesso face às emissoras, uma mensagem muito clara – e perigosa para o futuro da radiodifusão – será passada para todo o mercado da televisão: se a Aereo não precisa pagar nenhum valor às emissoras para ter o direito de explorar seu conteúdo, ninguém mais precisará. Uma vitória da Aereo significaria uma ameaça muito séria à capacidade das emissoras de produzir conteúdos de alta qualidade e também de cobrar as taxas de retransmissão atualmente pagas, por exemplo, pelas operadoras de TV a cabo, o que colocaria em xeque todo o modelo atual de distribuição de receitas do mercado televisivo.
Se, por um lado, a justiça americana tem demonstrado uma forte preocupação em relação à defesa da liberdade econômica, visando não prejudicar o avanço de novas tecnologias e modelos de negócio, por outro, as cortes estão garantindo abrigo jurídico a uma atividade cujos lucros dependem, diretamente, da exploração não autorizada (sob forma de captação e retransmissão) de conteúdo de alto valor agregado produzido por terceiros.
Entende-se que as cortes deverão ponderar, ainda, o fato de que uma das muitas consequências de uma eventual vitória judicial da Aereo é a inevitável desvalorização do conteúdo produzido não só pelas emissoras, mas também por estúdios e produtoras de séries e cinema. Tal desvalorização poderá acarretar na diminuição dos valores distribuídos aos criadores das produções. Escritores, roteiristas, atores, todos seriam afetados pela perda de valor causada pela “pirataria legalizada” dos conteúdos transmitidos over-the-air, sem falar no impacto que seria causado no mercado publicitário.
No Brasil, onde ainda não temos conhecimento da existência de nenhuma iniciativa semelhante às startups Aereo e Aereokiller, as emissoras nacionais acompanham com forte interesse e preocupação o deslinde dos casos americanos. Afinal, está nas mãos da justiça americana a decisão de reconhecer ou não a ilegalidade dessas atividades parasitárias, abrindo assim espaço para profundas mudanças que seriam impostas na indústria da televisão.

Ioma Carvalho é gerente jurídica das Organizações Globo e coordenadora do módulo de PI no Fórum Brasileiro de TV Digital.
Gustavo Quintella é advogado das Organizações Globo.

 Nº 133 – Maio/Junho 2013