Robôs-jornalistas e ética: até que ponto essa união é possível?

O jornalismo ocupa um espaço importante na sociedade há muito tempo. Desde o surgimento dos primeiros veículos de massa, a imprensa realiza um trabalho fundamental para a consolidação da democracia. Na atualidade, porém, o jornalismo vem sofrendo transformações drásticas, uma delas é a incorporação de máquinas produtoras de notícia.
A prática vem se difundindo rapidamente e gerando controvérsias. Dentre elas está a capacidade dos robôs serem éticos.
A ética é a ciência da conduta que avalia como o homem se relaciona em sociedade a partir de duas linhas de estudo. Uma delas tem caráter normativo, a qual busca estabelecer os princípios constantes e universalmente válidos para a vida social. A segunda linha tem caráter explicativo e busca compreender as morais históricas numa reflexão sobre os costumes. De forma geral, enquanto a ética está situada em um patamar mais filosófico-reflexivo, a moral trataria dos dilemas cotidianos enfrentados pelo homem.
O professor e jornalista Eugênio Bucci complementa a ideia de duas facetas da ética ao afirmar que uma se assenta sobre o indivíduo e sua conduta e outra na sociedade. Cada indivíduo tem livre-arbítrio para definir oque é bom e ruim. Embora esses conceitos sejam relativos, eles nortearão não só as atitudes individuais,mas igualmente as definidas em coletividade. Assim, é preciso ter senso de coletividade para tomar determina-das decisões, já que as atitudes individuais têm consequências sobre a comunidade.
Dessa forma deve ser vista a prática jornalística, pois ela trata de informações de interesse coletivo. Como o jornalista tradicionalmente atua em uma empresa de comunicação, a avaliação sobre a ética recai também sobre as organizações. Para diversos estudiosos, a mídia tem a obrigação moral e legal de servir ao público com equidade e responsabilidade, virtudes que balizamo exercício da ética das empresas e dos profissionais que nela trabalham. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros é taxativo ao tratar possíveis interferências 2017 na produção de notícia como um desrespeito. Além de combater ingerências, o texto ainda acrescenta que os meios de comunicação necessitam, prioritariamente, apresentar a notícia de forma adequada isenta de interesses externos ao público consumidor de conteúdo.Já o pioneiro jornalista Cláudio Abramo concebe a ética jornalística sob outro olhar. Para ele a ética é exercida exclusivamente na relação entre o jornalista e o consumidor de informação. “No jornalismo, o limite entre o profissional como cidadão e como trabalhador é o mesmo que existe em qualquer outra profissão. (…) A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista”.

Máquinas e jornalismo
Figura até pouco tempo comum apenas em filmes ou livros de ficção científica, máquinas ultramodernas estão assumindo funções cada vez mais tipicamente humanas. Uma delas é o jornalismo. Há alguns anos robôs passaram a redigir notícias em formato textual sem a interferência humana. A tecnologia mais recente é a Geração de Linguagem Natural (NLG na sigla em inglês). A partir de uma grande quantidade de dados digitais, a NGL produz automaticamente a linguagem humana a partir de uma representação computacional da informação. O software e o sistema de computador da NGL criaram essa geração de jornalistas robôs, que também são conhecidos por jornalismo automatizado ou ainda jornalismo algorítmico.
O debate em torno das consequências disso está aumentando em todo mundo, apesar de no Brasil ainda ser muito incipiente. A necessidade das empresas de comunicação reduzirem custos com mão de obra é uma das explicações para o elevado crescimento dessas máquinas, mas não se resume a isso. O desenvolvimento tecnológico e a velocidade da informação também tornaram indispensável o uso de robôs nas redações. Eles são muito rápidos e eficazes para apurar e captar informação. Entre os exemplos, estão os veículos aéreos não tripulados, ou drones como são mais conhecidos. Essas máquinas podem substituir ou complementar a captação de imagens com muitas vantagens sobre o trabalho humano.
Todos esses benefícios, todavia, ainda são frágeis em diversos aspectos. Os instrumentos legais existentes no Brasil não abrangem minimamente possíveis erros de robôs-jornalistas. O Código de Ética do Jornalista tampouco prevê algo nesse sentido. Algumas pessoas acreditam que basta responsabilizar o programador por possíveis desvios éticos e legais. Essa perspectiva, porém, é limitada, pois existem máquinas que são capazes de tomar decisões sozinhas baseadas em sua própria “experiência”, isto é, fatos pretéritos nos quais ela percebeu que determinada ação atingiu ou não os objetivos. Nesta circunstância, o programador não pode ser o responsável porque a máquina mudou ao longo do tempo.
Alguns imaginam que talvez poder-se-ia responsabilizar o dono da máquina. Todavia, ele também não pode ser responsabilizado por algo que não podia prever. Assim, reside um vácuo em como atribuir uma punição por desvios de uma máquina capaz de tomar certas decisões sozinha.
As polêmicas recentes em torno da grande quantidade de notícias falsas publicadas e replicadas por redes sociais digitais e motores de busca, como Facebook e Google, são prova dessa confusão em torno de ética de robôs-jornalistas. Há até a suspeita de que os erros na seleção e divulgação de notícias pelas mídias digitais tenham favorecido a eleição do novo presidente norte-americano Donald Trump. As empresas de tecnologia se defendem afirmando que não produzem conteúdo, apenas os distribuem, e que não podem ser responsabilizados pelo que é divulgado. Contudo, parte da opinião pública defende que o problema maior está no fato de robôs fazerem a seleção das notícias.
É fato que após a demissão de editores no Facebook, aumentou sensivelmente a quantidade de notícias falsas sendo replicadas pela rede social. Logo, percebe-se como não se pode exigir das máquinas determinadas posturas, como o compromisso ético. Conceitos difusos, como verdade e mentira, são inerentes ao jornalismo, já que a função dele é, basicamente, trazer informações de utilidade pública. Todavia, a máquina não foi criada para lidar com aspectos controversos.
O cientista norte-americano John Von Neumann já ex-plicou que as máquinas necessitam de cálculos para realizar as tarefas solicitadas pelos humanos, pois as mesmas geralmente dizem respeito a respostas como sim e não, ou seja, processos automatizados, nos quais não são necessárias habilidades abstratas. Embora tenham ocorrido avanços significativos nas máquinas, a ampla difusão de notícias falsas no ambiente digital mostra que elas ainda não estão preparadas para exercer a ética jornalística.
Como atestou Von Neumann, o cérebro humano não tem a precisão de uma máquina computadora no que diz respeito a discernir informações em meio a muitas outras, mas ele pode sobressair-se em determinadas tarefas. Para o cientista, a deterioração da aritmética foi trocada por um aperfeiçoamento da lógica no cérebro humano. A lógica, por sua vez, é indispensável para o exercício do jornalismo, pois ela ajuda a compreender os costumes, que trazem fundamento à ética. Sendo a ética dependente de fatores externos, é demasiado improvável que uma máquina tenha informações exteriores suficientes para tomar uma decisão baseando-se em opiniões alheias. Ou ainda mais distante da realidade seria pensar que o robô teria condições de interagir com os humanos de tal forma que pudesse depreender seus comportamentos e tirar uma conclusão lógica disso.
O desenvolvimento das máquinas e o consequente uso nas atividades atualmente desempenhadas por humanos é uma realidade inexorável. Todavia, é preciso avaliar as consequências disso para a sociedade e para a própria democracia. O fato do Brasil ainda estar muito atrasado no debate e na criação de dispositivos regulamentares é preocupante. Essa situação deixa o país  refém da própria sorte e as consequências são incalculáveis, haja vista o que ocorreu na eleição presidencial norte-americana.

Referências
ABRAMO, C. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
BUCCI, E. Sobre ética e imprensa. São Paulo, Companhia das Letras: 2000.
LICHTERMAN, J. Obama: New media has created a world where “everything is true and nothing is true”. Nieman Lab – Foundation at Harvard University, November 18, 2016. Available at: https://goo.gl/d6hzL9. Access: November 18, 2016.
NEUMANN, J. V. The computer and the brain. Yale University Press, 1958.
SULLIVAN, M. Call it a ‘crazy idea,’ Facebook, but you need an executive editor. Washington Post, November 20, 2016. Available at: https://goo.gl/kaQPHQ. Access: November 24, 2016.

Lucas AraújoLucas Araújo é graduado em Jornalismo e mestre em Literatura pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) faz doutorado em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Trabalhou por 15 anos como repórter, editor e gerente de jornalismo em afiliadas da TV Globo e Rede Record no Estado do Paraná. Foi repórter e editor do Grupo RBS (Canal Rural) em São Paulo (SP), e professor na Unopar e Faculdade Pitágoras e atualmente leciona na pós-graduação da Unipar, FAG, Fasul, Faccar e Univel.
Contato: professorlucasaraujo@gmail.