TV e cinema expandidos. Dispositivos e enunciação

Artigo – Continuação do artigo da SET 159

Por Almir Almas

ed160_pag66_1

Frame de registro de Kit Menezes em vídeo de “Copan Thriller Revisitado”, 2014

ed160_pag66_2

Frame de registro de Kit Menezes em vídeo de “Copan Thriller Revisitado”, 2014

Feita essa introdução aos conceitos, passa-se agora a especificar duas das obras citadas acima, destacando delas os aspectos que apontam para a expansão da televisão e do cinema. Não se fará uma análise fílmica, videográfica ou televisiva dessas obras. O que interessa aqui são apenas os aspectos da expansão e de como procedimentos adotados reverberam procedimentos originalmente do cinema, da televisão ou do vídeo e se hibridizam nas linguagens artísticas, técnicas, poéticas e estéticas e em gêneros, formatos e cultura.
Dessa feita, as obras:

“COPAN THRILLER REVISITADO”, de 2014
Esta é uma obra autoral, e em formato de cinema expandido, live-image e espetáculo audiovisual. “Copan Thriller Revisitado” é uma versão ao vivo do meu curta “Copan Thriller”, gravado em VHS em 1988, no próprio Edifício Copan. Nesta versão cinema expandido/live-image, apresentada no Satyrianas, convidei a atriz Djane Borba, que fez o curta original, para contracenar no alto do Edifício Copan, com a atriz Ana Rosa, que faz o papel de uma jovem atriz que encontra a fita VHS do curta e ao começar a assisti-lo resolve ir a busca do local em que se passa a história (Edifício Copan), como se fosse atrás do passado que o filme apresenta. Ao chegar lá no Copan, ela se encontra com a atriz do filme original, que lhe aparece como um fantasma.

A tecnologia usada no trabalho foi o que permitiu que a trama pensada pudesse acontecer ao vivo. A personagem de Ana Rosa sai de dentro do Porão do Espaço dos Satyros e corre pela Praça Roosevelt, em direção ao Copan; e lá ela se encontra com a personagem de Djane Borba. Todo esse percurso e o encontro das duas atrizes são mostrados ao vivo, em tempo real, via pacotes de streaming de redes de celulares. Para que se pudesse ter esses pacotes de streaming via rede de celular, tive o apoio da empresa brasileira U-Can digital transmission (representante no Brasil da empresa israelense Live-U), que cedeu o uso de uma mochila-link. A direção do trabalho foi feita ao vivo, de dentro do porão do Espaço dos Satyros, em que a montagem foi feita tendo as imagens da revisita/remontagem do filme original, com as imagens vindas ao vivo, em streaming pela rede 3G. O público acompanhou o trabalho diante de um telão de vídeo instalado nos porões do teatro, de onde ele também pode ver a saída da personagem de Ana Rosa, em busca do Copan. No começo do espetáculo, ela está nos porões do teatro, diante do telão, coloca a fita VHS no aparelho de videocassete, e essa imagem é projetada na tela. Ao identificar o Edifício Copan no vídeo, ela sai em busca do prédio. E partir desse momento, o curta passa a ser remontado ao vivo, revisitado, e as imagens da atriz caminhando do teatro até ao Copan, passando pela praça, seu encontro com a personagem de Djane Borba no alto do edifício (local da locação do filme original) e seu caminhar conjunto, são montadas juntamente com o filme original revisitado.

Figura 4: Estrutura das cenas e interações (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

Figura 4: Estrutura das cenas e interações (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

A trilha sonora do espetáculo foi executada ao vivo pelo músico Caio Kenji Uesugui, tendo como base a trilha sonora original do filme, composta pelo Roger Bacoom, Mário Santiago, Almas Beatnik e pela Banda Ou Isis, mixada com manipulações sonoras, realizadas com o software Pure-Data, de peças musicais compostas por Roger Bacoom e insertes sonoros do filme “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla (1968).

“TRAPÉZIO”, de 2011
Filme interativo para televisão digital, de direção de Marília Fredini; programado por Marília Fredini e Thiago André de André, com a orientação minha, como TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) do Curso Superior do Audiovisual do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universida-de de São Paulo.

Nesse filme interativo, realiza-se a expansão da televisão, especialmente, através do diálogo que se estabelece entre a sintaxe audiovisual e a sintaxe de programação. Ou seja, adentra-se, para além do campo da produção audiovisual, o campo da engenharia de software. Nesse diálogo, algumas características são consideradas: a construção de processos interativos, os quais estabelecem uma comunicação de mão dupla entre emissor e receptor (ou entre emissoras de televisão e telespectadores), os diferentes tipos ou níveis de interação que são programadas e permitidas, a ação passada para a mão do telespectador ativo (que se transforma em um “interator”, ou “co-autor interativo”), a exigência de se pensar na rapidez e na consistência na função de transmissão de dados e para a fruição audiovisual (ou seja, para que o telespectador/interator possa vivenciar o lugar de enunciação, tão caro ao cinema).

Figura 6: Tela com ícones de interação durante uma cena do filme (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

Figura 6: Tela com ícones de interação durante uma cena do filme (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

Essa expansão televisiva permite também entender que o sintagma da linearidade audiovisual cede lugar ao paradigma da planificação não-linear do fluxograma. Ou seja, além de elementos visuais e verbais e de especificidades da dramaturgia e de uma narrativa aristotélica, no roteiro de uma obra em televisão expandida entram elementos até então não pensados como parte de uma obra audiovisual, como por exemplo, elementos topográficos, construção de planificação, adição de eventos que disparam ações, construção de nódulos narrativos e uso de ferramentais da escritura de código.
Desse modo, o pensamento por trás do filme interativo Trapézio acabou tendo de se haver com questões que são próprias das estruturas e linguagens de programação, para que na sua realização se pudesse pensar além da trama aristotélica da história. Houve, assim, a entrada de novos termos dentro da sintaxe audiovisual, que permitiram realizar a obra com o pensamento não apenas de diretor de televisão ou cinema, mas também de programador. Desta feita, ficaram familiares ao diretor, produtor, roteirista e montadores audiovisuais termos até então pouco usuais em seu meio, tais como contexto principal, contexto filme, âncoras, nódulos de conteúdo, nódulos de composição, conectores, focus index, role (papel), que são próprios da linguagem e sintaxe de programação (no caso, da programação em NCL do Ginga).

O filme Trapézio teve de se haver não apenas com essa sintaxe “estrangeira”, como também como outros conceitos que também eram externos à linguagem televisiva e audiovisual, como os conceitos de Design de Interação, de Design de Interatividade, de Interface, de Interação Humano-Computador e de Usabilidade. Pois, para a existência desse filme interativo, no contexto da televisão digital interativa, além de se levar em conta questões como o ambiente de radiodifusão, pelo lado das emissoras, que se preocupam com tecnologias que permitam procedimentos implementadores de função e de controle de fluxos do conteúdo audiovisual, leva-se em conta também a ponta da recepção, o lado do telespectador, tanto em suas padronizações técnicas para permitir recepção e ação (interatividade), quanto em seus procedimentos de uso no âmbito da cultura e do hábito.

Figura 5: Menu Inicial, em que se explica a interação nos botões coloridos (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

Figura 5: Menu Inicial, em que se explica a interação nos botões coloridos (fonte: Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. TCC de Marília Fredini, 2011)

Seguindo a definição de Mark Meadows (em seu livro Pause & Effect – the art of interactive narrative, de 2003) para as estruturas narrativas (Nodal Plots, Modulated Plots e Open Plots). Marília Fredini classifica o filme Trapézio como sendo um filme de “Modulated Plots”, em que “a compreensão final da obra se dá, portanto, diferentemente para cada espectador, de acordo com os diferentes caminhos narrativos que este pode optar por seguir”. Dessa forma, em seu TCC escrito, Marília Fredini apresentou o diagrama de interatividade por ela elaborado para o filme interativo Trapézio, no qual são especificados os pontos de interatividade e os caminhos a serem percorridos pelo telespectador em sua ação de interatividade.

Considerações finais
Peço licença para repetir aqui quase que completamente o que eu disse em artigo publicado por mim nos anais do “14º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia: #14.ART: Arte e Desenvolvimento Humano”, em 2015, este texto é fruto de meu trabalho artístico e de minha pesquisa em poéticas, técnicas e estéticas, em que o fazer prático ao mesmo tempo em que é resultado de estudos acadêmicos, também os antecede, no sentido em que direciona o artista sobre o seu fazer e sobre a reflexão teórica dos caminhos que a prática leva. Tanto para o pesquisador, quanto para o diretor (ou realizador audiovisual), o que se busca são a inovação tecnológica e a experimentação técnica de ponta para criar novas linguagens artísticas e novas poéticas audiovisuais. Dessa forma, ao tomar mão de dispositivos tecnológicos, em especial os baseados em sistemas computacionais e IHC (Interfaces Humano-Computadores), são realizadas experimentações híbridas que colocam lado a lado arte e tecnologia.
Nesta amostragem, são apresentados paradigmas de inovação e rompimento de barreira do estado de arte da tecnológica atual e também a hibridização em termos de culturas, estética e linguagens e de processos socioculturais de criação de novas estruturas a partir de diferentes práticas, em que contaminações mútuas e sintaxes se mesclam em experimentações de transposição entre signos. O processo no caminho da televisão e do cinema expandidos aponta, indubitavelmente, em direção da expansão das expressões de arte (ou, das mídias) e das culturas envolvidas (YOUNGBLOOD, 1970). Rompem-se barreiras de expressões culturais e hábitos, de gêneros e formatos (literários, audiovisuais), e de dispositivos e aparatos (cinema, televisão, vídeo). Arlindo Machado (MACHADO, 1993) diz que os procedimentos técnicos formatam o produto audiovisual apresentado. Nessa linha, entendo que o fazer artístico não se dissocia do paradigma técnico, e vejo essas obras como representantes desse pensamento.

Referências bibliográficas
ALMAS, Almir. Estudo de Caso de cinema expandido/vjing/live-image e tecnologia de imagem em HDTV e ULTRA HDTV (UHDTV/4K). In: BASTOS, Paulo Bernardino; VENTURELLI, Suzete; ROCHA, Cleomar (Coord.). Anais de “14º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia: #14.ART: Arte e Desenvolvimento Humano”. Aveiro, Portugal: UA Editora, 2015. P. 121-124
BAMBOZZI, Lucas. A era do ‘ready-made’ digital. Disponível na Internet via: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1680,1.shl Arquivo capturado: maio 2004.
________ O fenômeno da manipulação de imagens. Disponível na Internet via: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2555,1.shl Arquivo capturado: maio de 2004.
________ . Outros cinemas. In: Redes sensoriais: arte, ciência, tecnologia. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica. PUC-SP, 2004.
__________ ARTE E NOVAS MÍDIAS: práticas e contextos no Brasil a partir dos 1990. Rizoma para a Documenta 12 Magazines. http://www.rizoma.net/interna.php?id=296&secao=artefato acesso em 19/06/2007 – 05h54
CARVALHO, Ana. Experiência e fruição nas práticas da performance audiovisual ao vivo. In: TECCOGS: revista digital de tecnologias cognitivas. 6 ed. São Paulo: PUC-SP, 2012.
ALVES, Marília Fredini. Projeto Trapézio: uma narrativa interativa para a TV Digital Brasileira. São Paulo: Curso superior do Audiovisual do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2011 (TCC, orientador: Almir Almas).
GÁRCIA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
GAWLINSKI, Mark. Interactive Television Production. London: Focal Press, 2003.
JONES, Randy. New Eyes for the mind. In: DEBACKERE, Bonis; ALTENA, Arie (org.). The Cinematic Experience. Amsterdam: The Sonicactes Press, 2008.LEMOS, André. Anjos Interativos e retribalização do mundo. Sobre interatividade e interfaces digitais. Disponível em <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/interac.html acesso em 08 abril de 2003.
LEMOS, André e PALÁCIOS, Marcos (org). As janelas do ciberespaço. Porto Alegre: Sulina, 2001.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997
MACHADO, Arlindo. 2007. O sujeito na tela. Modos de Enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Editora Paulus.
MACHADO, Arlindo. 2000. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora SENAC São Paulo.
MEADOWS, Mark Stephen. Pause & Effect – the art of interactive narrative. Indianápolis (USA): New Riders Publishing, 2003.
MONTEZ, Carlos; BECKER, Valdecir. TV Digital Interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005.
MORAN, Patrícia. A montagem dos VJs: entre a estimulação ótica e a física. in: Intermídias.com. Belo Horizonte, UFMG, 2004.
________________ VJ em cena: espaços como partitura audiovisual. Disponível em: http://www.telekommando.net/videodebolso/aic/txts/vj_em_cena.pdf
SCHLITTLER SILVA, João Paulo Amaral, TV Digital Interativa: convergência das mídias e interfaces do usuário. São Paulo: Blucher, 2011.
YOUNGBLOOD, Gene. 1970. Expanded Cinema. New York/USA: P. Dutton & Co., Inc.

ed160_pag66_6Almir Almas é Videoartista, VJing, Cineastas; Professor e Pesquisador do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autor de “Televisão digital terrestre: sistemas, padrões e modelos”, Alameda Editoral, de 2013, dentre outros livros e artigos.
Contato: [email protected]

Post Tags: